“Humano, demasiado humano”. “O homem
é essencialmente mau”. Duas frases marteladas por Nietzsche e Hobbes. Para esses
filósofos somos essencialmente maus, nascemos cruelmente inatos. A sociedade
com suas regras, leis, religiões, sistemas morais, nos retira a barbárie e nos
civiliza.
Pois bem,
então já que somos todos maus, estamos apenas fingindo bondade para viver
confortavelmente em sociedade? Não, não é bem assim. Para Nietzsche, nós não
temos consciência de nossa maldade, nos acreditamos bons, pois somos guiados
por regramentos, sobretudo da religião, que nos diz que passos seguir e assim
seremos bons, seremos recompensados, caso contrário, iremos para o inferno,
seremos maus.
Severino,
um homem bondoso, vai à missa todos os domingos, paga o dízimo fielmente, faz
caridade, é fiel à esposa, trabalhador, sustenta sua família, portanto, um
homem bom. Ele também fica feliz em ver vídeos de pessoas sendo torturadas na
internet, comemora a morte de crianças pretas, pois já previu que ia crescer e
virar bandido mesmo. Ele é contra políticas de bem-estar social, como bolsa
família, cotas para negros e pessoas com deficiência. Fica extremamente
irritado quando vê notícias sobre o assunto e é capaz de acreditar nas mais esdrúxulas
notícias quando vai de encontro com suas ideias e valores.
Marieta,
uma mulher bondosa, vai ao culto toda semana, participa de projetos sociais,
serve sopão todo sábado, boa mãe, boa esposa, cuida da casa, cuida da aparência,
defende uma alimentação saudável e exercícios, uma boa mulher. Marieta, assim
como Severino, odeia políticas públicas distributivas, faz campanha contra o
aborto, mas ignora crianças já nascidas, inclusive comemora quando a polícia
invade a favela e quando mata criança, explica que é apenas dano colateral. Ela
odeia feministas, ensina seus filhos que ser homossexual é pecado, mas que
respeita?!
Severino
e Marieta são pessoas benquistas na sociedade, são mães e pais queridos, são
tias e tios queridos, são irmãos adorados. Pessoas respeitáveis, direitas,
trabalhadoras, bem-sucedidas. São cidadãos de bem.
Porém, Severino
e Marieta, são incapazes de enxergar a maldade em si mesmas. Se indagados sobre
ser a favor de tortura, explicam que o são devido a uma questão de justiça,
afinal, o bandido mereceu. Se perguntamos o porquê de perseguir o outro,
responderão que estão tentando proteger os seus, afinal, sua família, seus
filhos, seus amigos não precisam e não podem vivenciar um mundo tão deturpado, estão
apenas limpando o ar, higienizando o ambiente, tentando fazer do mundo um lugar
melhor.
Afinal,
quem consegue enxergar a maldade de Severino e Marieta se eles mesmo não
enxergam? O outro. O inferno são os outros disse Jean-Paul Sartre. O outro sabe
que Severino e Marieta são essencialmente maus, que a perseguição a empregada,
que a humilhação ao subordinado, que a falta de empatia, os jogos de poder são oriundos
da maldade humana, ela é que demasiada humana.
Jean-Jacques
Rouseau propõe uma visão diferente: o homem nasce bom e a sociedade o corrompe.
Sendo assim, Severino e Marieta são apenas fruto do meio. Esse desejo mórbido de
ver o outro em maus bocados foi aprendido. Se eles tivessem sido criados por uma
família amorosa, empática, respeitosa e que sente compaixão pelo outro, talvez
não teriam tais sentimentos ou não teriam tais ações.
As ciências
humanas ainda não encontraram uma resposta definitiva. O que temos são defensores
de uma proposta ou de outra. Além disso temos também os defensores da importância
da genética no comportamento humano.
Eu particularmente
acredito em um pouco de cada, uma visão pessoal mesmo, baseada no senso comum e
vulgar. Entretanto, acredito que temos a capacidade de ver além. A filosofia
tem grande importância nesse olhar mais aguçado sobre nós mesmos. O papel da
filosofia é martelar. Martelar o oco e a escuridão da falta de reflexão e autorreflexão.
Martelar a escuridão para iluminar com questionamentos. Imaginem então um
martelo batendo forte em suas cabeças!! Deve doer né? É assim a filosofia,
martelar e fazer doer, bater forte para fazer você enxergar o que estava
escondido.
Se nascemos
bons e fomos corrompidos ou se já nascemos maus, não interessa muito nessa
reflexão. A honestidade das ideias, a consciência, a iluminação de olharmos
para dentro de nós mesmos com uma lamparina, como instiga Diógenes, o cínico, e
enxergarmos muito além do bem e do mal, isso sim interessa.
Quem
combate monstros precisa tomar cuidado para que isso não o torne um monstro. Se
você olha muito tempo para dentro do abismo, o abismo também começa a olhar
dentro de você. Friedrich Nietzsche.